Abuso sexual infantil: como reparar o irreparável
O abuso sexual infantil tornou-se um problema emergente da sociedade contemporânea e temos assistido a uma explosão discursiva sobre o tema. A aversão a este tipo de crime gera unanimidade quase absoluta. Crianças, assim como adolescentes, serão sempre seres humanos com direitos especiais e qualquer crime contra eles se transforma rapidamente num modelo de atrocidade.
O abuso sexual infantil e a sua configuração histórica incluem características que implicam a permanência de preconceitos e tabus que favoreceram a invisibilidade da real magnitude deste tipo de crime. É certo que a crescente enfatização dada, e comparativamente àquela que sempre foi dada à violência física e maus-tratos, tem contribuído para a sua desmitificação e para uma sociedade mais informada e que denuncia mais. Contudo passamos do antigo silêncio para uma visibilidade ruidosa.
Será justo questionar se não vivemos hoje uma “epidemia” de abusos?
As notícias são diárias. São múltiplas. E os números são assustadores: as estimativas indicam que 1 em cada 5 crianças é vítima de algum tipo de violência sexual; os números relatados no recente Relatório da Comissão Independente são monstruosos e apesar do escândalo da igreja católica ser o mais recente, infelizmente ao longo das décadas temos assistido a vários, o processo Casa Pia e o caso Ballet Rose (que abalou o regime de Salazar).
O abuso sexual de menores é o termo utilizado para de uma forma ampla e generalizada descrever atos de utilização de menores, por familiares ou não, com ou sem uso de força, para a sua própria satisfação sexual e que pode assumir várias formas: exposição (a atos de exibicionismo ou imagens e conteúdos pornográficos e sexuais), estimulação e toque físico, e o ato sexual propriamente dito.
O que significa que embora muitas das vezes o abuso sexual infantil não implique penetração ou relação sexual coital, isso não implica menor impacto sobre as vítimas. Importa esclarecer que se no âmbito do abuso sexual em adultos a questão do consentimento toma relevância, no abuso infantil e de acordo com a Legislação Portuguesa, o consentimento não é discutível pois existe uma assimetria de poder e ausência de autodeterminação sexual pelo menor, pelo que todos os contatos sexuais entre uma criança e um adulto são contatos abusivos.
O abuso sexual é um crime perverso, que destrói completamente uma das manifestações e conquistas mais importantes da civilização humana: o direito à liberdade, à vida e à segurança. Talvez seja um dos danos mais difíceis de reparar pelo seu impacto desestruturante e irreversível. É uma espécie de objetivação do humano, da negação da essência que lhe assiste e define. A vítima é muitas vezes a primeira a sentir-se culpada, a sentir-se não digna, a sentir-se suja, quando na verdade esses são atributos que se deveriam remeter ao agressor.
O abuso sexual infantil é impiedoso e traz consequências graves para a saúde e bem-estar da vítima. Constitui-se como uma ameaça ao desenvolvimento psicossexual de um ser ainda em formação traduzindo-se frequentemente em repercussões que se manifestam também na idade adulta, tais como:
- Ansiedade e medos generalizados (que se podem tornar constantes).
- Baixa autoestima e sentimentos de insegurança associados a uma autopercepção desvalorizante. É comum a vítima apresentar sentimentos como humilhação e vergonha que se tornam nucleares na estrutura vivencial.
- Distorção cognitiva associada ao sentimento de culpa e responsabilização pela situação.
- Depressão ou sentimento de tristeza profunda.
- Comportamentos auto e hétero agressivos (automutilação, comportamentos reativos e/ou disruptivos).
- Isolamento social e perda de interesse por atividades.
- Diminuição do desempenho intelectual (dificuldades de concentração, memória).
- Dificuldades de relacionamento interpessoal e estabelecimento de relações de intimidade. A investigação nesta área mostra que as pessoas que sofrem de abuso sexual durante a infância têm maior probabilidade de serem vítimas de abuso sexual na idade adulta e de serem vítimas de violência nas relações amorosas (sexual ou de outra natureza).
- Vivência de uma sexualidade disfuncional (maior probabilidade de encetar em comportamentos de risco e promiscuidade).
- Ideação e tentativa de suicídio.
- Perturbação de somatização (disfunções sexuais, infertilidade, gastrites, dor física, entre outras).
- Perturbações do Sono e outras perturbações mentais como Perturbações do Comportamento Alimentar e Perturbações Aditivas.
Na verdade, pela frequente e forte associação ao desenvolvimento de perturbações na idade adulta, o abuso sexual infantil é um problema de saúde pública. Felizmente e não obstante o impacto nefasto do abuso sexual, a verdade é que observamos crianças e adolescentes que conseguem tornar-se adultos adaptados. As vítimas de abuso perdem a sua inocência, mas muitas revelam uma resiliência extraordinária. A resiliência descreve precisamente o conjunto de processos sociais e psíquicos que possibilitam o desenvolvimento de uma vida saudável. É a capacidade de recuperar e manter um comportamento adaptado, mesmo depois de um dano.
No entanto uma questão permanece: quem é o tipo de ser humano capaz de cometer estas atrocidades?
Atualmente falamos mais em abuso sexual infantil do que em Pedofilia (que se constitui como uma categoria diagnóstica das perturbações mentais caracterizada pelo comportamento sexual de natureza desviante). Talvez por isso hoje consideramos mais as dimensões sociais e culturais do fenómeno, muito para além da doença, não havendo espaço para a esquiva à responsabilidade social.
Na complexa caracterização dos agressores, vários fatores podem e devem ser citados: a vitimização na infância e adolescência, tipo de experiências interpessoais e sociais prévias, convivências em ambientes de proximidade com menores, etc. Mas de um modo geral a perversidade atravessa idades, géneros, papeis e estratos sociais.
O abuso sexual infantil é um problema que deve ser enfrentado coletivamente. Importa prevenir mais do que reparar. Remete-nos à importância enquanto sociedade do papel de cada um na construção e preservação dos direitos humanos básicos e que são para todos. As crianças de hoje, serão os homens e mulheres d´amanhã.